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Guerrilhas no front de batalha

FARC e ELN rompem paz, iniciam 2022 com execuções e geram temor a colombianos que vivem na fronteira com a Venezuela

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A ficha do motorista de caminhão Conrado Castrillon, de 56 anos, ainda não havia caído no dia 9 de janeiro deste ano. Dois dias antes, seu filho Dany Stith Castrillon, de apenas 19 anos, foi assassinado a tiros disparados à queima-roupa, quando voltava para casa em sua motocicleta recém-adquirida, a 400 metros de onde toda sua família o aguardava para jantar, em um bairro periférico da cidade de Saravena, no estado colombiano de Arauca, uma região rural que faz fronteira com a Venezuela.

“Não sei quem foi, mas sei que, quem fez isso com meu filho, matou um inocente. Um menino simples, que não gostava de sair, de jogar bola, que gostava de ficar com a família e que havia acabado de comprar uma moto para trabalhar com ela”, disse o pai à Record TV. Com quatro quarteirões de distância, o cenário da morte de Dany ocorreu na mesma rua onde ele sempre viveu. Abordado por sicários armados, ele foi retirado de cima da moto e baleado. Morreu na hora. O pai foi o primeiro familiar a chegar. Ali, se desesperou e viu seu mundo cair.

O sentimento de dor, luto e revolta em Arauca não se restringe à família Castrillon. Desde a madrugada de 2 de janeiro deste ano, pelo menos 33 pessoas foram encontradas assassinadas com marcas de tiros em quatro cidades do estado: Saravena, Tame, Fortul e Arauquita. De acordo com a Promotoria da Colômbia, cerca de 50 pessoas estão desaparecidas. E mais de 170 famílias estão desabrigadas. Os dados, na prática, porém, são contestados pela população local, que afirma que pode já ter ultrapassado 50 o número de óbitos.

A maioria das vítimas, de acordo com o MP (Ministério Público) e a Polícia Nacional colombiana, eram suspeitas de pertencerem às duas guerrilhas que disputam a região: os dissidentes das FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) e os membros do ELN (Exército de Libertação Nacional). As investigações locais apontam que, na madrugada do dia 2, guerrilheiros do ELN invadiram as casas de suspeitos das FARC, os raptaram, levaram para o território venezuelano, assassinaram e, depois, devolveram os corpos ao território colombiano.

Desde então, os dissidentes das FARC praticaram atos de represálias no estado de Arauca, que, segundo as investigações, tiveram réplica e tréplica, num círculo de mortes que não cessou e que não tem previsão de cessar. O acordo de não agressão que os dois grupos vinham mantendo nos últimos anos acabou. As guerrilhas colombianas voltaram para o front de batalha.https://player.r7.com/video/i/61f32fbb416eb9db05000b91O Massacre de Arauca

No Massacre de Arauca, como ficou conhecida na Colômbia a madrugada de 2 de janeiro deste ano, não houve confronto, de acordo com o MP: as pessoas que morreram foram caçadas dentro de casa pelos atiradores. No entanto, apesar de oficial, essa é apenas uma das versões que correm pela região. Existe uma guerra de informações, também, com FARC e ELN se atacando e dizendo que suas ações são apenas vinganças a atos cometidos anteriormente pelo grupo rival.

O estado de Arauca, cuja capital tem o mesmo nome, contém sete municípios com o total de 294 mil habitantes. De acordo com a Defensoria Pública, havia, até a publicação desta reportagem, pelo menos 53 pessoas desaparecidas. Além disso, mais de 12.000 pessoas abandonaram suas casas com receio de que as guerrilhas invadam suas moradias e cometam crimes como agressão, ameaça, estupro e homicídio.

De acordo com a Promotoria colombiana, 20 das 27 vítimas do Massacre de Arauca foram identificadas. Quatro delas já eram investigadas anteriormente como integrantes das FARC. Outras quatro tinham passagem pela polícia. Também foram identificadas duas mulheres, dois menores de idade e quatro cidadãos venezuelanos. Seus familiares fugiram do estado para regiões desconhecidas por medo.https://player.r7.com/video/i/61f49c09416eb9cfde000bd4Fronteira livre

O confronto entre os dois grupos ocorre, de acordo com investigações locais, por conta da rota do tráfico internacional de cocaína. A Colômbia, que é um dos principais produtores da droga no mundo, tem uma fronteira de fácil acesso ao território venezuelano em Arauca. Ao passar por ali e chegar à Venezuela, a cocaína fica a apenas sete horas do porto de Maracaibo. E, de lá, o produto vai para a Europa e EUA embarcado em navios de carga.

O que divide o município colombiano de Arauca e a cidade venezuelana de El Amparo é apenas o Rio Arauca. Uma ponte internacional que liga as duas cidades por via terrestre tem barreira militar há cerca de 11 anos. Mas, por baixo dela, no rio, inexiste fiscalização. Durante todo o dia, pequenas embarcações levam e trazem pessoas — e produtos — de um país para o outro, sem nenhum empecilho e em menos de dois minutos a bordo.

Além do contrabando de carne, peixe e gasolina, o entorno desse rio é controlado por criminosos ligados aos dois grupos guerrilheiros colombianos, mas também por bandos venezuelanos. O movimento só termina às 17h, horário estipulado pelos grupos criminosos locais como limite de permanência das ruas da fronteira.

Uma força-tarefa foi montada pelas autoridades de segurança pública de Arauca e do governo central colombiano. Após as execuções, mais de 600 homens do Exército foram enviados para a região. A sensação de insegurança, no entanto, perdurou. Nos caminhos terrestres que ligam as cidades de Arauca, Tame, Saravena e Arauquita muitas barreiras do Exército foram colocadas. Em uma abordagem ocorrida em uma dessas barreiras, um militar chegou a registrar os repórteres da Record TV em uma fotografia, com a placa do carro do motorista em destaque.

Duas semanas depois, apesar da presença dos militares no estado, quem patrulhou as ruas de Arauquita no dia 16, por exemplo, foram homens identificados com braçais do ELN e fortemente armados.

Rio Arauca, que divide Colômbia e Venezuela, é controlado por grupos criminosos (Divulgação/Record TV)

Rio Arauca, que divide Colômbia e Venezuela, é controlado por grupos criminososDIVULGAÇÃO/RECORD TVFim dos protestos

No fim da manhã de 8 de janeiro, na praça principal de Tame, uma estância eco turística de Arauca, ocorria o último de uma sequência diária de protestos da população civil pedindo paz em meio à guerra. Com pessoas vestidas de branco e com bandeiras da Colômbia em um carro de som, os moradores da cidade afirmavam no autofalante que os araucanos não são violentos, nem apoiam os enfrentamentos. Pelo contrário, mesmo estigmatizados no restante da Colômbia, eles são vítimas. O que eles pediam nos protestos era, apenas, viver em paz. 

A ativista Mayerly Briceño foi uma das primeiras a se organizar e ir às ruas de Tame logo após os primeiros homicídios, registrados no começo do ano. Moradora de uma área rural no município, ela teme reviver a tensão e o perigo de sua adolescência. Dez anos antes, quando ela ainda era uma estudante, se recorda de um episódio em que o campo de futebol de sua escola estava repleto de minas terrestres instaladas. Com um filho pequeno, a ativista teme que ele passe pelas mesmas situações.

“Neste momento, sentimos muito medo pelo que está passando e pelo que pode acontecer. Desde o dia 2 de janeiro, não temos paz, não temos tranquilidade. Em alguns lugares já não há alimentos, remédios, tem gente que está desalojada. Tudo por temor de que haja um novo enfrentamento e que os campesinos fiquem no meio. Todos os dias nos perguntamos por que isso está acontecendo”, afirmou Mayerly à reportagem.

Responsável por uma associação comunitária de Tame, Alveiro Caicedo Barragan complementou que tem pedido às guerrilhas que, dentro de seus conflitos, sejam respeitados os Direitos Humanos civis, deixando de fora os moradores que não tenham ligação com nenhum grupo. “Aqui, cada vez que há uma vítima, se afeta diretamente à vida da população. Se a vítima faz parte de algum grupo, seus familiares sofrem represálias, muitos têm que ir embora. Neste momento, há muita gente saindo daqui”, disse.

Último protesto pedindo paz realizado na cidade de Tame (Divulgação/Record TV)

Último protesto pedindo paz realizado na cidade de TameDIVULGAÇÃO/RECORD TVAtentado como vingança

Entre as cidades do estado de Arauca, o município de Saravena é um dos mais estruturados e movimentados. Suas ruas centrais foram projetadas todas com canteiro central e o comércio popular é pujante. Mas Saravena é um dos principais pontos de conflito entre FARC e ELN porque ali os grupos dividem o território em igualdade de forças. Assim que a reportagem estacionou o carro no centro da cidade, na manhã do dia 10, observou uma movimentação de homens do Exército e da Polícia Nacional em uma esquina.

Os militares e policiais estavam averiguando a entrada de uma companhia estatal de água que havia sido explodida na noite anterior. Apesar de não estar autorizados a ceder entrevistas, informalmente um policial afirmou à reportagem que a principal suspeita era de que a bomba havia sido colocada no local por dissidentes das FARC porque a empresa alvo teria ligações espúrias com o ELN. A fachada de vidro ficou inteiramente estilhaçada. A cabina de vidro de segurança também ficou inteiramente trincada.

Entre a noite do dia 19 e a madrugada do dia 20, um carro bomba explodiu em frente a uma organização social de Direitos Humanos. Devido ao atentado, uma pessoa morreu e outras quatro, feridas, foram levadas ao hospital da cidade. De acordo as informações preliminares divulgadas pelas autoridades de segurança pública local, o ataque teria sido efetuado por dissidentes das FARC.

Empresa estatal que estaria ligada ao ELN foi alvo de atentado a bomba supostamente ocorrido em ação das FARC (Divulgação/Record TV)

Empresa estatal que estaria ligada ao ELN foi alvo de atentado a bomba supostamente ocorrido em ação das FARCDIVULGAÇÃO/RECORD TVOs desabrigados

“Neste momento, estamos, de maneira preventiva, saindo, sim, do nosso território. Desabrigados. Porque estamos inseguros. Não queremos estar imersos a esse conflito que está se apresentando.” O depoimento, cedido à Record TV, é da colombiana Yorledys Macualo, campesina que mora, há anos, na zona rural do município de Tame. Assim como ela, cerca de 170 famílias decidiram deixar suas casas com medo de que guerrilheiros possam chegar ao local e praticar algum ato criminoso.

Há relatos, históricos, de que agricultores e moradores locais, que vivem em uma localidade em que haja uma atuação forte de determinada guerrilha, acabam sendo alvo quando ocorre um ataque da guerrilha rival. Isso porque os guerrilheiros entendem que esses moradores colaboram com os inimigos de alguma maneira.

Esta não é a primeira vez que Yorledys ficou desabrigada por conta das guerrilhas. Em 2013, aconteceu a mesma coisa. Daquela vez, teve de sair de casa porque grupos paramilitares, que enfrentam ilegalmente as guerrilhas, agiram iguais as guerrilhas, atacando os moradores locais sob o argumento de que eles eram informantes e colaboravam com a dinâmica dos grupos guerrilheiros.

“Mudou tudo na minha vida. Deixar tudo para trás não é fácil”, disse. Com a voz embargada ao se referir aos dois filhos que tem, a campesina afirmou que isso afeta diretamente a juventude deles. “Eles podiam aproveitar, mas têm que ficar fugindo. Isso é duro. O que eu mais desejo é que eles consigam viver em paz”.

Sem pai nem mãe

Em 2014, Laudy Cardenas tinha apenas 17 anos. Sem nem sequer ter completado a maioridade, teve de frente um drama familiar gigantesco: viu o pai ser assassinado por paramilitares, que o acusavam de colaborar com guerrilheiros, e a mãe sequestrada e desaparecida pelo mesmo motivo. Ela ficou anos atrás do paradeiro da mãe e só encontrou os restos dela, atrás de uma igreja, em 2012.

Laudy conta que os paramilitares diziam que uma das filhas dos pais dela tinha envolvimento amoroso com um guerrilheiro. Na época, ela tinha apenas uma irmã, de 11 anos. Ambas tiveram que ir para Bogotá fugindo dos paramilitares. Naquele mesmo ano, ELN e FARC estabeleceram uma trégua por meio de um acordo de paz. Tempos depois, Laudy voltou para Tame. A raiva que ficou foi tamanha que ela conta que, por pouco, não passou a integrar uma guerrilha para vingar os pais contra os paramilitares.

No entanto, ao perceber que a vida dela seria pior se entrasse para a guerrilha, decidiu não entrar e ajudar outros órfãos e vítimas dos grupos criminais em Arauca. Ela explica que muitos dos jovens que entram para a guerrilha ou grupo paramilitar tinham o mesmo desejo dela: vingança.

“Isso me causou grandes problemas psicológicos. Não conseguia dormir, entrei em depressão, não tinha mais vontade de viver. Quando decidi voltar para Tame, decidi trocar os medicamentos pela ajuda às demais famílias que sofreram e sofrem o mesmo que eu”, afirmou Laudy, que hoje compõe a Mesa Municipal de Vítimas de Tame, que é uma organização que recebe e orienta vítimas e familiares de vítimas dos grupos armados.

A ponto de entrar para um dos grupos guerrilheiros, ela justificou que é o mesmo sentimento, no ciclo vicioso de violência que existe no local, que fomenta, há tantos anos, tais grupos: “Tinha perdido meu chão. Perdi meus pais. Não havia solidariedade, nada. É assim que os jovens chegam às guerrilhas.”

Laudy perdeu pai aos 12 anos, ficou até 2012 sem o paradeiro da mãe e quase virou guerrilheira (Divulgação/Record TV)

Laudy perdeu pai aos 12 anos, ficou até 2012 sem o paradeiro da mãe e quase virou guerrilheiraDIVULGAÇÃO/RECORD TVUma família inteira desaparecida

Quem hoje vê Gloria Robledo Estupiñan como moradora e produtora de queijos na área rural de Tame, de vida simples e pacata, não consegue imaginar o drama familiar pelo qual ela passou. Ela teve o pai, dois irmãos e um tio assassinados por guerrilheiros. E ainda tem um terceiro irmão desaparecido forçadamente. Ela não sabe o paradeiro desse irmão, nem tem informações se ele está vivo ou morto. Além disso, ela perdeu um terreno, que foi invadido por combatentes das guerrilhas locais.

Bastante emocionada, ela relembrou que soube da morte do pai pela televisão. “Eu não sabia até ver a televisão. Disseram que ele foi degolado. Ou seja, depois de baleado — ou antes, não dá para saber —, ele foi degolado. Umas pessoas o encontraram e nos avisaram. Depois, comecei a trabalhar como cuidadora e seguimos estudando. E sempre pensei em vingança. Mas, Graças a Deus, arrumei outra maneira, ajudando as vítimas do conflito armado.”

Segundo ela, o motor que a move, atualmente, é a busca pela verdade. “Não por mais nada, porque meu coração mudou. Tive uma experiência dura, mas que serviu na vida”, afirmou. Em determinado momento, ela disse ter dialogado com um guerrilheiro das FARC. “Foi muito profundo, porque, mesmo que não tenha sido ele o responsável pelas mortes dos meus familiares, integra a organização que fez mal para a minha família”, relembrou. Ela entende que o diálogo, atualmente, é uma medida para pedir que as guerrilhas respeitem os civis.

De maneira sútil, ela criticou a atuação dos militares do Exército, que chegaram a Arauca momentaneamente após as execuções do dia 2. Para ela, de nada vale a presença momentânea, uma vez que, com a saída das tropas, as guerrilhas voltariam a se fazer presente — que é justamente o que aconteceu a partir da terceira semana de janeiro.

Gloria perdeu familiares e propriedade ao longo dos anos em Tame (Divulgação/Record TV)

Gloria perdeu familiares e propriedade ao longo dos anos em TameDIVULGAÇÃO/RECORD TVMinas que sempre explodem

Gloria Robledo também citou histórias de minas terrestre que costumavam existir no passado e que, aparentemente, ainda existem no território: enquanto ela cedia entrevista à Record TV, duas explosões de minas foram escutadas. Normalmente, essas minas eram colocadas por guerrilheiros em território inimigo em ruas vicinais. Por isso, hoje, as principais vítimas dessas minas antigas são animais, como cachorros e bois.

No entanto, as minas ainda podem ferir e matar pessoas. Naquela região, justamente nas ruas vicinais, é forte a presença de venezuelanos que, a pé, seguem pela estrada dos Libertadores de Arauca para o centro da Colômbia, Peru ou Equador.

A reportagem observou nas estradas muitos venezuelanos fazendo essa rota. Ao conversar com um deles, que estava apenas com uma mochila pequena, ele contou que havia saído da Venezuela dez dias atrás e que a ideia era continuar caminhando até o Equador, à procura de uma vida com mais dignidade e trabalho.

Quinze anos atrás, na cidade de Fortul, Guillermo Murcia Duarte foi mais uma vítima de mina terrestre na Colômbia. A mina havia sido deixada por um grupo guerrilheiro no quintal da casa dele. Após a explosão, ele teve que fazer nove cirurgias e ficou quatro anos acamado. Contou que a explosão mudou totalmente sua vida: ele era agricultor, tinha 21 anos e seu filho tinha apenas três.

Ou seja, perdeu condições de continuar trabalhando, perdeu o início de vida do filho e o seu casamento acabou, porque a mulher queria voltar para o campo e ele tinha medo de pisar lá novamente. “As vítimas de minas da Colômbia têm histórias similares depois do acontecimento: a maioria perde seus companheiros. Porque muda toda a vida. Você não pode mais trabalhar, fazer as coisas, tudo fica diferente. Assim, se destroem as famílias”, afirmou.

Antes da explosão, ele era agricultor. Depois, não pôde mais puxar itens pesados e, assim, também perdeu a ferramenta pela qual conseguia dinheiro para sobreviver. “É assim que muitos acabam, também, entrando para os grupos armados. Você não tem mais o que fazer, te tiraram tudo. E ainda tem o sentimento de vingança. É isso o que abastece os grupos armados”, disse.

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DIVULGAÇÃO/RECORD TV“Meu irmão está enterrado aqui”

O cemitério de Saravena tem mais mortos vítimas de ação de guerrilheiros do que vítimas de morte natural. A informação foi cedida por um sepultador que trabalha há anos no local, mas não foi autorizado a falar oficialmente. Ali, o engenheiro Juan Pablo Jimenez foi até o túmulo do irmão, Eduardo Jimenez Camacho, morto em 2009 por um dos grupos guerrilheiros. “Ele foi levado para a Venezuela, foi assassinado lá e, depois, enterrado aqui”. A dinâmica é semelhante a alguns dos assassinados no início deste ano.

“Mortos naturais, mortos inocentes, mortos pelo conflito, de autores armados. Aqui tem esses corpos enterrados”, disse o engenheiro a caminho do túmulo do irmão. “Muitas vezes, aqui é necessário enterrar um corpo sobre o outro, porque já está cheio. Mas mortos naturais aqui são muito poucos. Aqui se encontra meu irmão: um corpo a mais vítima do conflito. Dizem que tal pessoa é de tal grupo e, sem ter total certeza, se assassina. Foi isso o que aconteceu com ele”, afirmou.

“Me dói muitíssimo saber que há muitos inocentes enterrados aqui”, complementou.

Juan volta ao túmulo do irmão, morto por guerrilha na Venezuela (Divulgação/Record TV)

Juan volta ao túmulo do irmão, morto por guerrilha na VenezuelaDIVULGAÇÃO/RECORD TVNo meio do fogo cruzado

Na madrugada do dia 2, um morador de Arauca, que pediu para não ser identificado, estava ainda nos resquícios das festividades da virada de ano com sua família, em Saravena, quando começaram a surgir rumores de que algo não estava certo. “Começaram a chegar no WhatsApp fotos, áudios, vídeos, informes para que ficássemos em casa. Logo, relembramos da nossa realidade de dez anos atrás”, disse.

Na década passada, os moradores da região da fronteira viviam sob medo, com toque de recolher no fim da tarde e histórias macabras de atos de violência praticados por guerrilheiros e paramilitares. “Eu amo essa terra, não quero sair daqui por isso. É importante dizer que tem um lado armado do lado esquerdo, outro lado armado do lado direito, e nós, moradores, vítimas disso, no meio”, afirmou.

Para a secretária de governo do município de Arauca, Martha Janeth Mantila, é importante apontar que não há só crime, guerrilha e violência na cidade e no estado como um todo. “Já existe um estigma forte contra os araucanos. Dizem no resto da Colômbia que araucanos são guerrilheiros. Na verdade, nós somos tão vítimas quantos os demais colombianos também vítimas desses grupos à margem da lei”, conta.

Segundo ela, é importante frisar que a cidade é um polo turístico, com muitas ofertas de música, gastronomia e esportes. Na realidade, a cidade é bem pacata, mas os araucanos lutam no momento contra qualquer estigmatização. O esporte preferido na região, homenageado por artesãos e obras de arte, é a vaquejada. Os moradores se reúnem numa área de mata, para assistir aos vaqueiros derrubando bois e bezerros segurando-os pelo rabo, enquanto os que estão de fora comem pratos típicos, como carne de ovelha, sopa, banana da terra e batata.

Vaquejada é o principal “esporte” praticado no estado de Arauca (Divulgação/Record TV)

Vaquejada é o principal “esporte” praticado no estado de AraucaDIVULGAÇÃO/RECORD TVVítimas sexuais das guerrilhas

Nos anos de 1990, M., filha de um policial nacional, foi vítima de estupro coletivo praticado por outros policiais, quando voltava para casa. Com o passar dos anos, vivendo em Arauca, voltou a ser abusada, dessa vez por integrantes de grupos paramilitares. E, naquela época, não foram poucas as histórias de crimes sexuais que ela escutou de outras mulheres, praticados por combatentes das guerrilhas. “A mulher é sempre usada na guerra, ou sexualmente ou como peça de manobra para afetar o grupo rival”, afirmou.

Outra mulher, J., perdeu o pai e o irmão assassinados pelas FARC. Os sobrinhos, filhos do irmão morto, foram vítimas do mesmo grupo anos depois: sequestrados. Do sequestro, apenas um voltou com vida. Teve que fugir, saiu do país por um tempo, depois permaneceu outro período em Bogotá até sentir que poderia voltar para Arauca em segurança. Na fronteira, J. afirma que as mulheres estão duas vezes mais suscetíveis a crimes praticados por guerrilheiros, uma vez que, além de homicídio, podem sofrer estupro.

“Arauca, para mim, é uma ameaça. Porque as forças militares também veem as mulheres como um espólio de guerra. Ou se apaixonam ou nos utilizam para informações. Nossas filhas, nossas sobrinhas, nossas netas. Todas elas ficam no meio desse conflito. Somos usadas em meio à guerra. Tanto pela força militar legal quanto pela força militar ilegal”, afirmou.

Ainda de acordo com J., o problema migratório que existe entre Venezuela e Colômbia atinge também as mulheres de Arauca porque, com menos ofertas de emprego, sobem subempregos e prostituição.

Vítima de abuso relembra ataques a mulheres feitos por guerrilheiros (Divulgação/Record TV)

Vítima de abuso relembra ataques a mulheres feitos por guerrilheirosDIVULGAÇÃO/RECORD TVEx-comandante assume erros

Na sede do partido Comunas, que abriga a maioria dos ex-combatentes das FARC que agora se dedicam à política, o esquema de segurança estava reforçado na manhã do último dia 14, em Bogotá. Isso porque o ex-comandante das Farc Rodrigo Granda estava no local para uma série de compromissos. Entre os compromissos, uma entrevista agendada com a Record TV. Ao redor do local, dezenas de segurança à paisana estavam espalhados por todo o quarteirão. Para entrar no prédio do Comunas, a reportagem foi submetida a um rigoroso esquema de segurança e teve todos seus itens averiguados.

Rodrigo Granda recebeu a reportagem de maneira gentil. A entrevista, que tinha como limite apenas 30 minutos de duração, durou cerca de uma hora. O ex-guerrilheiro, que tem contra ele, entre uma série de acusações, a de ter organizado, em 2004, o sequestro que acabou na morte de Cecilia Cubas, filha do ex-presidente paraguaio Raúl Cubas Grau. Ele nega envolvimento no caso.

“Reconhecemos publicamente o que fizemos a comunidades inteiras, a pessoas, a famílias, a comunidades. E vamos seguir reconhecendo porque, sim, houve erros. Somos acusados de crimes de guerra. Reconhecemos a parte que nos corresponde às partes envolvidas. No centro de tudo isso, estão as vítimas do conflito”, admitiu Granda à Record TV.

Ainda segundo o ex-comandante, todos os ex-guerrilheiros são colombianos e, na Colômbia, têm que conviver. “Não podemos ir para a China, nem para a Lua. Precisamos encontrar uma forma pacífica, com respeito à tolerância e convivência”, disse. Granda complementou que ao admitir os erros e se colocar à disposição da Justiça, faz o suficiente. Ele argumentou que não pode se auto crucificar pelo resto da vida.

“É preciso dignificar as vítimas. É preciso reconhecer, mirá-las nos olhos e admitir o que nós cometemos. E pedir a essas pessoas e a essas comunidades perdão”, afirmou. “Não temos nenhum impedimento para dizer as coisas más que fizemos. Houve abusos e não podemos negar. Éramos integrantes de movimentos revolucionários e temos que assumir diante da população, do país e da comunidade internacional nossas responsabilidades”, complementou.

Além de crimes como sequestros, roubos e assassinatos, Granda reconhece a ligação das FARC com o narcotráfico. “Estávamos numa área onde havia cultivo de coca e, obviamente, cobramos uma taxa. Tínhamos uma presença política e militar nessa área. Controlávamos, por isso, o que se movia a nível da economia. Se passava com um caminhão carregado com café, tinha que pagar um imposto às FARC. Se passava com milho, também. Com peixe, cerveja ou qualquer outro produto econômico, o mesmo. Se passava com coca, igualmente tinha que pagar um imposto”, afirmou.

Por fim, ele diz que a participação que ele tinha nas FARC não era na primeira linha de combate, então, não poderia ser condenado por crimes praticados por outras pessoas.

Rodrigo Grande, ex-comandante das FARC, atende a Record TV na sede do partido Comunes (Divulgação/Record TV)

Rodrigo Grande, ex-comandante das FARC, atende a Record TV na sede do partido ComunesDIVULGAÇÃO/RECORD TVVisões que não saem da mente

Ubaldo Zúñiga não se arrepende de ter sido guerrilheiro, defende sua participação nas FARC contra o sistema político — antigo e atual—, mas diz que, se pudesse voltar atrás, não faria tudo novamente. O ex-combatente se recorda de três oportunidades em que foi acordado com explosões de bombas atiradas por militares do Exército contra o acampamento onde estavam. Mas afirma que o mais duro durante os anos em que esteve na guerrilha foi ver crianças ficando órfãs após combates ocorridos na selva. 

Pai de dois filhos, tidos antes de ele entrar nas FARC, ele afirma que não se arrependeu de tê-los deixado para integrar a guerrilha. “Eu estava lutando por eles e pelas demais crianças da Colômbia”, se defendeu. Ainda segundo ele, após o processo de paz de 2016, quando voltou para Bogotá, reencontrou os filhos e foi recebido com amargura. Apesar da defesa à atuação das FARC, ele diz ter entendido que a paz e justiça que sempre buscou jamais podem ser conquistadas por meio de armas. “A solução é o diálogo e a política”, afirmou.

Ubaldo Zúñiga relembra bombas órfãos da guerra entre guerrilha e estado (Divulgação/Record TV)

Ubaldo Zúñiga relembra bombas órfãos da guerra entre guerrilha e estadoDIVULGAÇÃO/RECORD TVTempo que não volta atrás

O ex-comandante Manuel Bolívar ficou 15 anos na selva, em atuação pelas FARC. Mais de cinco após voltar para Bogotá, ele ainda se emociona ao relembrar o tempo de guerrilheiro. “Eu fazia faculdade de jornalismo, quando conheci as favelas de Bogotá. A pobreza era muito chocante. E, por estar ao lado dos oprimidos, fui ligado às FARC pelo Exército, que me ameaçou de morte. Então, decidi me dedicar à guerrilha”, afirmou.

Uma vez integrado à guerrilha, Bolívar conta que reaprendeu a viver e teve que se adaptar a tudo. “Até a andar a gente precisa reaprender, porque, se não souber andar na selva, você se desequilibra”. Com mais de uma década, ele diz ter visto de perto todos os horrores que uma guerra pode causar. Entre eles, os momentos que teve que atirar e que viu amigos da guerrilha mortos ao seu lado.

Com cargo de responsabilidade à época, ele não relativizou o termo “narcoguerrilha”. Segundo ele, para estruturar a luta armada, negócios com traficantes eram feitos. “Para passar pelo nosso terreno com a droga, cobrávamos, sim, uma taxa, que não vou me recordar agora ao certo o valor preciso, mas girava entre 1% e 5% a cada remessa de cocaína.

Hoje, dono de uma cervejaria e de um restaurante numa área nobre de Bogotá, Bolívar se emociona e diz que a luta não valeu a pena ao se recordar dos 15 anos que passou longe da família: “Quando estávamos no processo do acordo de paz, chegaram algumas tecnologias que, antes, não tínhamos. Então, pude falar por telefone com a minha irmã. Nesse telefonema, eu estava feliz e emocionado. E pedi para falar com a minha mãe. Foi quando minha irmã me falou que minha mãe havia morrido fazia três anos.”

Bolívar não se arrepende de ter ingressado nas FARC porque diz que seguiu seu coração. No entanto, pela parte familiar, diz que a luta não valeu a pena: “Minha mãe morreu com a angústia de não saber como eu estava e nem se eu estava vivo”.

Manuel Bolívar soube da morte da mãe três anos depois do falecimento (Divulgação/Record TV)

Manuel Bolívar soube da morte da mãe três anos depois do falecimentoDIVULGAÇÃO/RECORD TV

Conteúdo: Núcleo de Jornalismo Investigativo da Record TV
Reportagem Investigativa: Luís Adorno e Lumi Zúnica

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